Mestre Françuli
De tanto observar os pássaros, Mestre Françuili quis voar de Potengi
Conhecido na cidade de Potengi como inventor do sertão, Mestre Françuili desde pequeno queria fazer uma história. O que ele não sabia era que estava certo e o legado na cultura popular começaria do céu. Aos 77 anos, ele continua desenhando modelos de aeronaves e ainda possui um sonho: trabalhar.
O sonho de Mestre Françuili ganhou forma quando um avião cruzou o céu da roça do seu pai, em meados de 1948, e criou no menino o sonho de voar. O que o pai de Francisco Dias de Oliveira mais escutava do filho quando ele, ainda pequeno, sem nem acertar as sementes nas pequenas covas da terra, trabalhava no sítio Marmeleiro era que queria fazer uma história para deixar na cidade de Potengi. O menino foi chamado de doido.
A história do Mestre Françuili começa das brincadeiras com as outras crianças no alto de um pé de Juá. Na volta do caminho da roça ele observava os pássaros voando e já tinha uma fascinação por tudo que não encostasse os pés no chão. “Comecei a fazer avião, aí os meninos vinham brincar mais eu e tinha um ‘pézão’ de juá lá no terreiro. A gente fazia estrada, fazia os ‘avião’, quando era de noite, eles ajudavam a guardar e eu colocava no quarto para brincar no outro dia”, relembra o Mestre.
No começo os aviões eram de madeira, quebrava uma asa tinha que fazer outro inteiro. Naquela época, as coisas eram difíceis e nem solda tinha para colar os brinquedos quebrados. Mas foi voltando de mais um dia de roça, depois do almoço, que Françuili avistou umas latas de óleo de cozinha no lixo. “Eita, isso vai dar um avião bonito”, pensou. Françuili fez o molde e pegou a lata, mas não soube como iria cortar o material de ferro com a faca artesanal que havia ganhado do compadre Major que trabalhava no roçado com seu pai.
Pegar a tesoura da sua mãe escondido talvez tenha sido mais difícil do que fazer o avião nos flandres. Ele precisou de três dias para pensar como pegaria a tesoura, cortaria a lata e devolveria a ferramenta para uma das gavetas do móvel da cozinha. “Ela tava distraída, fui lá peguei a tesoura, cortei as peças ‘tudinha’, amolei a tesoura e coloquei lá de novo. Tinha uma pedra de amolar ferro que era mesmo um esmeril, amolei bem e coloquei na gaveta”, conta. Pronto, metade do caminho estava andado e o Mestre escapou do que chama de ‘pisa’ dada pela mãe se ela soubesse da artimanha do menino que queria voar.
Com o aviãozinho cortado, Françuili modelou, ajeitou e fechou. Estava feito o primeiro avião. Em seguida, sua mãe descobriu a terceirização da sua tesoura, mas ficou tão encantada pelo brinquedo inventado por seu filho que permitiu que ele usasse. Porém, era preciso uma coisa: entregar a tesoura amolada de volta para a gaveta, pois ela precisava para remendar as roupas da família. “Fiz um bocado logo, caia e não quebrava, amassava, mas não quebrava”, conta o Mestre.
Quando perguntado o porquê de aviões, ele justifica e resume no substantivo abstrato “bonito”. A brincadeira no terreiro se tornou um sonho. Não se sabe ao certo em que medida uma coisa passou a ser a outra, já que quando fala dos moldes cortados de aviões Françuili parece brincar com os pensamentos e com a imaginação. Mas o título de “inventor do sertão” foi adquirido na grande seca que durou três anos, entre as décadas de 1981 e 1983, quando um poço secou e o gado berrava na margem do buraco com sede sem alcançar a água do fundo.
Françuili estava trabalhando em seus aviões quando chegou um dos moradores da cidade e disse que estava passando sede espiando para a água. “E eu disse, por que não bebe? Era um poço profundo de até 3 metros, veio a seca e só ficou água nesse poço”, explica o Mestre sobre a necessidade de inventar uma coisa que tirasse a água do fundo. Françuli foi para casa. “Comecei a pensar: como vou fazer um balde para puxar água desse poço? Fui e inventei um balde com uma válvula no fundo, passei a noite pensando”.
O processo da invenção durou quase oito horas até Françuili tirar da cabeça a ideia e materializar o balde com a válvula. O teste foi bem-sucedido. Para além dos 12 mil réis que o Mestre recebeu, o título de inventor do sertão foi adquirido e daquele molde do balde, ele fez mais seis. Durante todo o inverno depois daquela seca, Françuili recebeu jerimum, melancia e abóbora, tudo colhido com as águas das chuvas no plantio da comunidade.
De volta aos aviões, o Mestre exclama sobre a quantidade que já fez na vida “Eu já fiz muito, num conto não”. O maior deles tinha uma extensão de seis metros, era uma réplica de uma ultraleve feita de cano, “ela ainda correu no chão com motorzinho de cortar mandioca”, relembra. Era 1983, o Mestre levou o modelo para o Araripe, a obra chamou atenção de curiosos e até hoje ele tem um filme da peça andando com ele dentro. Mestre Françuili tem o nome publicado no Diário Oficial do Estado com o título de Mestre em Artesanato em Flandres dia 23 de outubro de 2015. “Eu fiquei muito alegre e cheguei em casa pensando: Deus é muito poderoso!”, destaca um trecho da fala de Françuili na página 148 do Livro dos Mestres, publicado em 2017, pela Fundação Waldemar Alcântara.
Por 12 anos, ele trabalhou para o Centro de Artesanato do Ceará (CEART) de Fortaleza, todos os meses o Mestre mandava de Nova Olinda uma determinada quantidade de aviões para serem comercializados como brinquedos na capital cearense. A técnica de utilizar flandres e zinco se tornou obra exposta no Museu da Criança, em Salvador, Bahia, e em mais dois museus paulistas, nos quais o Mestre não recorda o nome. O livro de visitas possui assinaturas de caligrafias alemãs, francesas e peruanas, além de sobrenomes brasileiros de quase todos os estados.
Se a cabeça de Françuli por si só já era um museu, a casa dele é o esboço de um rascunho em constante processo, o Mestre sabe que o que importa para a obra não é o resultado final e sim a processualidade de cada técnica. “Primeiro faz os ferros, depois faço o molde aí vou fazer a peça, colo com solda branca”, explica passo a passo sobre a criação do flandeiro. A casa do Mestre Françuili, por sinal, se tornou oficialmente o segundo museu no conceito de orgânico, produzido e curado pelo Sesc Ceará e pela Fundação Casa Grande, em 15 de novembro de 2018. O endereço para correspondência é pronunciável em duas palavras: Beco de Françuili, sem número.
Desde do dia que avistou o avião, Françuli só voou quase quarenta anos depois. Aos 35 anos, quando entrou em avião para Belém, Pará, com uma passagem que recebeu de presente de um amigo jurista chamado de Salomé. Pai de quatro filhos, ele se divide entre Potengi e o Crato. Françuili é viúvo e conta que a sua esposa gostava muito das suas invenções, ela ajudava nas oficinas entregando a ele a “boia”, diz o Mestre sobre o prato de refeições após os trabalhos. Porém, o Mestre ainda tem um sonho: trabalhar. Apesar de estar fazendo fitoterapia para um problema no pé, ele diz com a sobriedade de quem nunca teve os pés no chão que está mais sadio do que aos 20 anos.